E enquanto seguia minha vida, não fazia a menor idéia
do que estava acontecendo com quem eu mais me importava. Só sabia que esta
pessoa não estava aqui, comigo. Eu soube que ela amou alguém. E que foi
correspondida. E eu tentei me alegrar, para esconder minha ferida. Não é como
se fosse um romance que daria certo, afinal. Colocaria as máscaras que fossem
precisas para que o elo que me une a esta pessoa, agora tão transparente e
frágil jamais se partisse. Então, eu a chamo. Venha ver-me quando tiver algum
tempo livre!
E sigo. Pessoas passam por mim, acabo sentindo que
essa minha vida é promíscua. Pura luxúria? Ou seria escapismo? Às vezes fujo de
coisas que acredito ser além de minha compreensão. Ou acredito que seja uma
forma ainda maior de traição. Mas trair a quem? A pessoa que eu amo? Ela nem
sabe disso... E nem vai descobrir esse modo estranho de meu mais devotado amor.
Mas então, um dia em casa, a visita chega.
E que estranho, ela sempre foi magra, agora... Mas
espere. Ela está grávida? Meu coração ao vê-la já bate a um compasso de escola
de samba, mas dessa vez, quase enfartei. Simplesmente fiquei ali, olhando pra
ela com uma cara de “o que é isso?” ou seria um poker face? Nem me lembro. Como
faria um homem que viajou e deixou sua Amada, ao retornar vê aquilo que menos
esperaria. Sua feição não demonstrava alegria. Era como um fantasma.
Então eu perguntei, como sempre: “E aí? Como é que
ta?” E emendei um “Novidades a caminho, não?” Mas seu rosto parecia mais de
alguém que se rendeu a uma guerra do que alguém que espera o fruto do seu amor.
Mas ela sorriu pra mim, do mesmo jeito de sempre. Aquele sorriso cheio de
significados, com uma profunda ferida por trás. Ela é incrivelmente forte...
Talvez seja o que eu mais amo nela. E é um sorriso de Sol, iluminando na mais
densa escuridão. Como poderia eu imaginar que um dia ela sorriria para mim
apaixonadamente? Isso não seria possível de maneira alguma. E eu sabia disso.
Mas aquele sorriso me esquentava e todos meus problemas eram esquecidos com uma
simples contração de músculos faciais. Humanos são criaturas tão bobas...
Mas a conheço há muito tempo, tinha algo errado, não
em seu sorriso, mas em seu olhar vago e um tanto vazio, perdido. E eu disse,
venha comigo. Segurei sua mão firmemente e a levei para um lugar de minha casa
que sei que ninguém incomodaria. Não com a intenção de levá-la para um lugar
sem ninguém por causa de uma paixão, meus sentimentos não são assim. Levei-a,
pois sabia que tinha algo muito errado.
Então estávamos numa sala de estar, com alguns sofás e puffs. Eu sentei
no chão. Ela num puff, ao meu lado. Então eu fiz cara séria e disse “Bem, acho
que você tem uma longa história pra me contar.” Ela disse que não era não longa
assim. E eu disse “mas você vai me contar.”
Levantei-me. Meu espírito estava mais inquieto que o
normal, já estava imaginando um monte de coisas, mas jamais imaginaria que o
motivo que levou ao acontecimento fosse tão vil, infantil. E eu tentava
aparentar uma pessoa amiga, na qual ela poderia contar, para desabafar, mas na
verdade, estava morrendo de medo de suas palavras, e consequentemente seus
efeitos em mim. Esta
pessoa tem completo domínio sobre minha existência. Se um simples sorriso me
leva ao êxtase, uma palavra poderia matar-me. Não literalmente, claro. Não sou
uma pessoa tão imatura assim. Como poderia deixar um mundo onde existe alguém
como ela, que esteve ao meu lado, me dando apoio tantas vezes? Talvez meu amor
seja apenas uma admiração doentia.
Então ela contou.
“Eu decidi parar de ajudar certa pessoa. Alguém
egoísta e mesquinho. Mas, pelo que pude perceber, era alguém de extremo poder.
Esta pessoa pediu para que fizesse certa coisa, mas eu disse que não voltaria a
ajudá-la. Já estava no meu limite, era muita coisa pra uma pessoa só, e eu
detesto pressão, você sabe. Apesar de eu ter sido o menos pessoal nessa posição
o quanto me foi possível, esta pessoa pareceu saber que minha desavença era
pessoal. Não sei exatamente como isso foi possível, mas, voltando da faculdade,
mais ou menos por volta das 22horas, vi pelo meu caminho muitos militares.
Muitos. Do Exército. E me olhavam... E eu fiquei confusa, não fiz nada de
errado. E o lugar estava deserto... E eu estava só... E foi isso.”
Silêncio.
Seu tom tinha sido de alguém que já tinha contado
essa mesma história muitas vezes. E não havia expressão, nenhuma emoção. Ela
olhava o chão. E eu... Eu fiquei por um momento olhando o rosto dela,
igualmente sem nenhuma expressão, pensando no que ela tinha dito. Essa mania
dela de não ser exatamente direta, dessa vez se constituía em uma armadura.
Talvez um eufemismo? Não acredito que tenha sido arquitetado verbalmente.
Talvez tenha simplesmente sido assim, era só sua visão do acontecimento, já que
“falar pela metade” era sua especialidade. Mas dessa vez não precisava de
continuação. Dava pra saber o que tinha acontecido depois do “E o lugar estava
deserto”. E eu ali, olhando pra ela, simplesmente. Seu corpo é pequeno, frágil.
Eu dei as costas a ela. Era demais pra mim. Coloquei a mão na boca, voltando a
mim. Então virei novamente e caí. Caí de joelhos na frente dela, não foi
pensado, minhas pernas tremiam tanto que essa era a melhor opção que meu corpo
ofereceu.
Então veio a ira. Comecei a esbravejar contra o
mundo, a perguntar a ela o que seria feito, o que estava esperando pra entrar
na justiça e outras coisas que nem me lembro mais. Ela disse que as patentes
eram altas. E que não teve testemunhas. E que o processo era complicado. As
pessoas não seriam punidas adequadamente e ela seria apenas mais exposta, mais
humilhada. Percebi naquele momento que ela, sua família e muito provavelmente a
pessoa que ela ama, pensaram muito no que fazer, devem ter estudado e se
desencabelado com a “justiça brasileira.”
Então veio a inveja. O que eu estive fazendo naqueles
prováveis quatro meses? E qual o motivo de eu não poder estar do lado dela? E
porque existiam pessoas que podiam? E então veio a avareza. E porque ela não me
contou nada? Era por isso que estava me evitando e desmarcando nossos
encontros? Foram milhões de perguntas cheias de pensamentos que não deveriam
estar ali. Mas estavam.
E então veio... A perda do orgulho. Chorava
copiosamente. Era a encarnação do desespero. Ela tentava me consolar, colocando
suas mãos em meus ombros, mas eu estava fora de mim. E quando ela disse, não
tem problema, eu esbravejei dizendo “Como não tem problema? Você é a pessoa
mais importante pra mim! É claro que tem problema!” Não sei por quem eu
chorava. Mas o mais provável seja que eu chorava por mim, tão egoísta. Cacos de
vidro pareciam penetrar em meu coração, pois meu peito doía absurdamente. Então
ela sentou-se ao leu lado. Disse pra eu parar de chorar, que ela já estava
melhor. Mas e quanto a mim? Eu não estava nada bem.
Deitei. O chão estava mais frio que o normal, ou
seria a tristeza que tinha congelado o ambiente? As lágrimas não pararam, mas a
ira desaparecera. Ela ficou olhando pra mim. Esperando as lágrimas secarem de
meus olhos. Não conseguia encará-la. Ela já deve ter chorado muito, mas eu só
estava chorando a nossa dor naquele momento. Nossa, pois agora aquela dor
também era a minha. Ela disse “Não vai me abandonar, não é?” e eu disse
“jamais, pois meu coração é seu. Não poderia viver sem ele, não?” Ela sorriu. E
pela primeira vez em sete anos, eu via lágrimas em seu olhar. E então, misericordiamente,
eu acordo.