Era uma viagem comum, mas um pouco corrida, um pouco de última hora. Ela não sabia o motivo, mas aparentemente um parque novo era a razão da viagem as pressas. Então eram os três num carro popular, com uma garota de 6 anos histérica pelo novo parque.
Foi então que as coisas começaram a ficar estranhas. Falta de gasolina deixou o carro... E o pai para trás. Foi uma desculpa esfarrapada, mas elas continuaram. Pegaram um trem. Dois estados depois, o trem descarrilhou. Muitos feridos, mas elas estão ilesas. Não conseguiram pegar nenhum ônibus. Como se ela fosse um zumbis ou um militar em missão, começou a pensar que ela realmente deveria ir para esse lugar não importa o quê. Seus instintos começaram a ferver com a possibilidade de algo estar muito errado.
Não importava onde elas iam ou por onde iam, algo as impedia de prosseguir. Enquanto descansavam na beira de uma floresta ao longo da rodovia, elas me encontraram. Percebi que a menina não era mais uma menina de seis anos. ela envelheceu, não por fora, mas por dentro. Sua idade não se apercebia em seu silêncio. Era uma boneca viva com olhos brilhantes. Ela me contou sua história e me pediu ajuda. Eu sabia que algo se manifestara no mundo, algo estava diferente do habitual. Será que são elas a causa? Eu duvidava disso, mas acreditava piamente nas desventuras que passaram. Algo nelas não estava correto.
Continuamos a percorrer o país e sempre encontrávamos obstáculos. Conseguimos andar de ônibus por um curto tempo. Ele capotou num viaduto que parecia um laço... dois oitos entrelaçados. Mais uma vez elas não se feriram. Nem eu. Mas as outras pessoas não tiveram tanta sorte. Felizmente ou não as imagens nessas pessoas ensanguentadas não abalavam ninguém. Todos estavam absurdamente convictos de seu destino. Passamos a andar na rodovia, alguma ação aconteceu. Corríamos enquanto ela gritava que Ela está atrás de nós. Ela quem? da onde ela arranjou esse discurso agora? Depois de tanto tempo calada agora vinha com essa conversa maluca? Por nenhum momento me arrependi de estar junto delas. Eu sabia os caminhos. Eu sei todos os caminhos. Eu vi todos os lugares.
Enquanto um mar de carros ia e vinha, estávamos nós andando numa fila indiana no meio das duas pistas frenéticas. Chuva, ladeira e derrapamos. E os carros iam parando. Ela gritou: "Estão sem gasolina"! Eu passei a entrar no modo automático delas e só ir em frente. Agora estávamos andando sobre uns pequenos montes que ficavam entre as duas pistas e antes da curva vi a fumaça negra. Meu estado alterado não permitiu eu pensar na merda que estávamos nos dirigindo. Então eu vi os carros começando a dar meia volta e vir na sua contramão. virou um caos. Então eu vi fogo. Fogo que consumia tudo, fogo que reclamava pra si todas as coisas. Nisso eu acordei de minha forma zumbizística e o choque daquele mundo virado de pernas pro ar bateu direto no meu peito. Minha expressão era de confusão. O que os deuses esperavam que eu fizesse ali? Eu deveria simplesmente sumir? Virei e vi ela agarrando seu rebento como qualquer fêmea faria em situação de perigo eminente. Eu não poderia deixar isso como estava. Respirei fundo, olhei ao redor pra me localizar e lembrei da cidade que ficava aquém do morro do lado direito.
Berrei apontando a direção, segurei a mão dela e saímos correndo. Em um dado momento eu virei e vi um vulto negro entre os carros. Foi então que nossas mãos se separaram e ela corria muito mais pra frente do que precisava. Gritei que por onde ia era um atalho, mas ela simplesmente disse que tinha que ir pelo outro lado e que nos encontraríamos lá. Estava ao mesmo tempo incrédula e confiante nessa resolução, não deixei de correr um só segundo. Uns homens estavam perseguindo ela quando finalmente nos encontramos no meio da feira** da cidade. Ela me viu, esperei chegar mais perto e disse, vamos despistar eles. Corremos mais, nos enfiando no meio da população, toda aquela muvuca foi suficiente pra que em pouco tempo estivéssemos tão perdidas quanto as pessoas que perseguiam elas. Mais uma vez vi o vulto negro, dessa vez mais perto, era uma pessoa vestindo um manto da cabeça aos pés naquele calor infernal... Aquilo certamente não era humano. Mas não me trouxe em momento algum sensação de perigo. Ela começou a dizer que aquilo queria matar ela e sua filha. E que chegar no tal parque seria a única chance de vencer aquilo, como se fosse uma barreira. Já estávamos muito longe do caminho, depois de tantos desvios e minha mente parecia vazia. Não vazio ruim. Um vazio que precede momentos de paz ou de esclarecimento.
Estava com fome e peguei umas frutas e um tanto de alface. Íamos andando, de qualquer forma, mas dessa vez eu já não tinha mais o foco de seguir freneticamente. Comecei a perceber o quanto ela estava assutada e na menina que continuava estática. Aquilo estava muito além do normal. Eu ia perguntar algo pra menina, mas desisti. Ela parecia mais calma do que qualquer outra pessoa ali. Entrei numa lanchonete. Precisava ir no banheiro, precisava analisar o que íamos fazer, elaborar um plano, eu precisava... Pensar. Sentamos e comemos. Nada foi dito. Comi minhas frutas e depois umas frituras. A menina comeu, mas a mãe não. Ela chorou. Deixei as duas ali pra ir no banheiro. Fui com umas folhas de alface na mão. Entrei e fiquei olhando o espelho, pensando em tudo o que aconteceu. Elas fugiam de algo maior que elas. Maior que tudo, pelo visto. Algo que poderia mudar destinos, refazer carmas, destruir o mundo.
Eu não sentia nada. Uma sensação calorosa começou a me invadir. Atrás de mim surgia o vulto negro, olhei pra trás e ele só aparecia no espelho. Não temia, parecia alguém que eu conhecia. Tirou o capuz e se mostrou, algo que aparentava ser uma mulher extremamente idosa. Feia. com muitas marcas de cicatrizes. Um olhar compenetrante. Eu estava deslumbrada por Ela. Então Ela falou: "Não tens medo me mim, não é? Sabe quem sou." Sua voz me disse, falou no meu coração. És a Morte. E não temo a senhora. Te admiro e se pudesse, te abraçaria. Nesse mundo as pessoas te odeiam, fogem de ti e te desprezam, como se fosse algo ruim. Eu nunca te vi dessa maneira. A Senhora é tão parte deste mundo quanto a Vida. Não tenho nada pra te dar, mas te ofereço essas folhas como gratidão por se mostrar. "Vou fazer poção delas. Ninguém me dá presentes." Ela riu, um riso triste. "Eles não têm respeito por esse mundo. Eles só respeitam a si. Destroem a ordem das coisas e quando vou buscar, me atacam e fogem de mim. Humanos são cansativos e me deixaram com essa aparência horrível." Eu sei que és bem mais que isso, eu sei de sua beleza e de sua plenitude, minha Senhora.
Olhei pras minhas unhas... Vi as Dela, brilhantes garras de cristal. Então eu ri e disse que bem que queria unhas brilhantes assim. Como se fosse a coisa mais normal do mundo, Ela tira um vidrinho de esmalte transparente da capa e rindo começa a pintar minhas mãos, que prontamente estendi na frente do espelho. "Esta mulher esta condenada, tanto ela quanto sua filha. O erro não é dela, e eu odeio ter que fazer isto. Por isso estou dando o tempo necessário para ela perceber por si, que algo está errado e que ela não precisa mais fugir. Ela pensa que há salvação. É uma pena, mas não há não. Eu vou levá-la, assim como levei um dos responsáveis por essa loucura, seu marido"... A Morte começou a dizer muita coisa, mas a cada palavra que ela dizia, menos eu entendia, eu estava maravilhada demais e ela estava pintando minhas unhas. "... destruindo parte do equilíbrio desse mundo. Eles irão todos pagar o preço, e aqueles cuja alma comprometeram. Elas não têm saída. Faça entender que não sou eu o mal. São eles e o que fizeram para destruir o equilíbrio do Universo..." o resto eu não ouvi ou ouvi e ficou em alguma parte dentro de mim. palavras com desconhecido idioma apareciam no espelho num marrom avermelhado como a henna e eu lia. eu lia as palavras da Morte e ouvia sua voz. E como eu estava plena e feliz. Terminado minhas unhas, ela olhou diretamente nos meus olhos, sorriu e se foi como surgiu.
Saí do banheiro resoluta. Sabia o que dizer e como dizer. Mas elas não estavam me esperando. O sentimento que senti deveria ser desespero por ter perdido elas mais uma vez, mas na verdade eu estava plena demais pra sentimentos tão mundanos. Fui andando e me afastando da feira. De alguma forma, eu sabia onde ir. eu sempre sei onde ir. Um lugar onde até mentes aflitas encontram alguma paz. Um local belo, um local calmo e longe da balbúrdia humana. Cheguei nesse parque florido, andei por entre vermelhos, amarelos e lilases entremeados por todo verde que existe. Estavam num belo e florido coreto azul claro, sentadas e impassíveis, olhando o jardim. Elas olharam pra mim quando eu já estava praticamente do lado delas. Sentei, peguei na mão dela e comecei. Aparentemente seu marido fazia parte de uma empresa gigantesca que fez merda com o meio ambiente. E para Gaia, aqui se faz, aqui se paga. O porém é que eles foram além do que se deveria. Mexeram com forças maiores do que podiam lidar em compreender. Na sua ganância, fizeram planos e pactos que não se sustentaram. E a hora do pagamento tinha chegado. Elas não deveriam mais fugir, mesmo inocentes. O local indicado pelo marido não era a salvação nem delas nem de ninguém. Era o centro de uma maldade que irradiava no universo, desfazendo nós que jamais deveriam ser desatados. E isso gerou uma onda cósmica... Antes que eu pudesse terminar de falar a menina se levantou.
Ela pegou nas nossas mãos entrelaçadas e sorriu pela primeira vez. Ela disse que esperava que mamãe entendesse que a vovó de preto nos chamava. Mas que tinha aprendido a ser uma boa menina e ficar calada em momentos de bagunça de gente grande. Nos olhamos, eu que certamente era mais velha que essa jovem mãe - que mal aparentava ter vinte anos -, essa menina que parecia ser a mais sábia de nós três... Ali entendemos a função de cada uma. Fugir, Proteger e Compreender.
*Ela tinha cabelo curto, channel. A menina vestia um vestido. Nunca soube os seus nomes.
**Era a feira do Japão na Liberdade numa versão muito ampliada.
Ps: Eh realmente uma pena que eu não consiga escrever as cenas de ação. Elas eram absurdamente realísticas e hollywoodianas.
Ps: Eh realmente uma pena que eu não consiga escrever as cenas de ação. Elas eram absurdamente realísticas e hollywoodianas.